Como as festas e as procissões continuam a demonstrá-lo,
esta herança religiosa ancestral tem um grade poder de mobilização. Mas,
parece-me, isso não significa que seja aquela piedade popular de que fala o
Papa Francisco (EG, 69, 90, 70, 122-126, 193, 169) capaz de galvanizar as novas
gerações.
Por me parecer tão anímico, é que carece, também, de um novo
anúncio de Jesus Cristo, enquanto recurso recriador das vidas nos novos
contextos.
Há quem diga que esta falha é que tem deixado espaço
demasiado livre para as seitas se irem implantando. Se elas fossem instituições
libertadoras, daríamos graças a Deus. Mas quem não conhece o fanatismo sufocante
de algumas delas e, sobretduo, da IURD, famosa pelo seu estilo manipulador das
sensibilidades religiosas das pessoas mais angustiadas na vida? É que não se
trata das Igrejas Protestantes de espírito ecuménico.
Sempre me pareceu que o àvontade com que a IURD crescia em
Moçambique era proporcional à perda dos altos valores da libertação fundante da
Pátria Moçambicana. Não sei o que se terá passado em Cabo Verde a este
respeito, mas constou-me que o PAIGC de Pedro Pires, teria alguma culpa na importação
de algumas destas seitas com as quais quis contrabalançar o peso histórico da
Igreja católica.
É curioso que, neste caso, parece coincidir com Ronald
Reagan, o protagonista da desgraça ultraliberal que desde então vem avassalando
o mundo. Com o fito de minar a força libertadora de alguns movimentos
católicos, nunca descurou esta vertente da política religiosa, envolvendo-se, segundo
se diz, no financiamento e na expansão de “movimentos religiosos americanos”
pelo mundo onde as massas populares se levantavam em luta contra a opressão
militarista e o capitalismo selvagem. Fez isso com o Brasil (a IURD será, talvez, o fruto mais relevante
dessa política religiosa anestesiadora), com toda a América Latina, com a
África e até com Portugal, onde, logo a seguir ao 25 de Abil apareceram os
famosos “Meninos de Deus” que parece terem-se metamorfoseado noutras
denominações (os Mormons ou a IURD, não sei).
Tudo isto faz parte do contexto e dos desafios que a nossa Igreja tem, hoje, pela frente, em Cabo Verde. A sua resposta criadora impõe-se. Parece-me que há que optar:
1º Decididamente, pela conscientização de toda a comunidade
católica segundo o modelo da Lumen Gentium assumido e entendido (bem
explicado e debatido a todos os níveis e sectores eclesiais, do mais simples
batizado até aos padres no seu conjunto) nas suas implicações práticas. Sem
esta conversão comunitária a uma genuína Igreja-Comunhão e de
corresponsabilidade, dificilmente a Igreja, no seu conjunto, poderá aparecer de
rosto limpo, transparente, irradiando como sinal credível e entusiasmante de
Jesus Cristo. Não é esta uma das novidades que o Papa Francisco nos transmite
com tanta simplicidade?
2º Por uma pastoral de
pequenas comunidades, chame-se-lhe núcleos de bairro, comunidades de base,
grupos de oração e acção. Pode ser muito variado o perfil destes grupos
cristãos. O que é preciso é que, neles, as pessoas, pela proximidade
experimentada, se sintam pedras vivas da Igreja inserida e comprometida no
mundo envolvente.
Foi esta lúcida opção que, em Moçambique, deu azo a que,
surgisse uma Igreja de pequenas
comunidades ministeriais mais ou menos espalhadas por todo o país e com
grande consistência e alguma autonomia, geridas por emergentes animadores locais leigos. É aquilo que
costumo chamar de verdadeira descolonização da Igreja e seu enraízamento no
coração do povo que a faz sua (como se lê nas conclusões da I Assembelia
Nacional de Pastoral, Beira 1977).
3º Por uma pastoral
bíblica, tal como o Papa Francisco recomenda na EG (174-175). Foi esta formação
bíblica – mesmo embrionária, mas persistente e progressiva - que alicerçou os
milhares de animadores emergentes nas pequenas comunidades que acima refiro e
que eram, também elas, emergentes nas vicissitudes do processo revolucionário moçambicano.
De uma vez por todas, os pastores mais responsáveis de hoje,
em Cabo Verde, – os padres – devem, a meu ver, dar prioridade a esta pastoral.
De outra maneira, continuarão a esgotar-se, em corridas de missas e demais
sacramentos (baptismos, casamentos – e até funerais), sem grandes frutos na
construção de verdadeiras e relevantes comunidades cristãs. Podem ter milhares
de fiéis, e até colaboradores pontuais nisto ou naquilo, mas nunca terão
comunidades de pessoas com envergadura e sentido de autonomia e
corresponsabilidade, evangelizadoras do meio social, económico e político que
as envolve.
Como é possível que depois de dezenas de anos, ainda me
possa ter sido dito, nesta minha recente estadia que, numa “comunidade” em cuja
festa do padroeiro participei, não haja, nem sequer uma pessoa que,
eventualmente, ao domingo, se o padre faltar, possa presidir uma celebração da
Palavra de Deus?
Colocar a Bíblia nas
mãos dos católicos é uma urgência incontornável. 50 anos depois da Dei Verbum (Vaticano
II) já não se compreende que esta vertente da pastoral não seja sentida como tal por todos os agentes pastorais, sobretudo os padres, que se esgotam no serviço do sacramentalismo. No entanto, parece-me que correr de missa para
missa pode até ser enganador e desvirtuar a própria celebração da eucaristia.
Urge um novo estilo de Igreja, mais próxima, mais espaço de
expressão das inquietações e anseios das pessoas de todas as idades, incluindo
do mundo jovem;
Impõe-se um novo anúncio evangelizador, capaz de voltar a
fermentar as tradicionais manifestações de piedade incutindo-lhe mais dinâmica,
mais adequação existencial, mais vitalidade evangélica, mais genuína e
libertadora sedução.
Poderão perguntar-me se detectei forças latentes nas Igrejas
onde passei. Em qualque das ilhas (Sal, S.Vicente, S.Nicolau, Boavista –
Diocese do Mindelo - e, agora, cidade da Praia- Diocese Santiago ) encontrei muitas
pessoas não só disponíveis mas, mesmo, ansiosas por que, também aqui, se
operacionalize o apelo de renovação que propus, tendo como pano de fundo a
minha experiência com as comunidades cristãs em Nampula (de alguma manira
generalizado em todo o Moçambique): comunidades ministeriais que envolvam todos
os seus membros, alimentando-se da Palavra de Deus (com uma prática de leitura
orante fundamentando e incentivando os cristãos aos compromissos na comunidade e
no mundo.
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Nota: o texto acima complementa uma introdução feita numa mensagem "post, para os entendidos" de 2/9/2014, que se iniciava assim:
Na minha recente estadia de um mês em Cabo Verde, um padre e um seminarista, perguntavam-me, em momentos diferentes, o que achava da Igreja católica do seu país. Com alguma prontidão, disse que me parecia excessivamente clericalizada. Parece que se não há padre, tudo pára. Ainda se me apercebi que houvesse leigos que se sentissem parte viva nas responsabilidades tanto pastorais como administrativas das paróquias.
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Nota: o texto acima complementa uma introdução feita numa mensagem "post, para os entendidos" de 2/9/2014, que se iniciava assim:
Na minha recente estadia de um mês em Cabo Verde, um padre e um seminarista, perguntavam-me, em momentos diferentes, o que achava da Igreja católica do seu país. Com alguma prontidão, disse que me parecia excessivamente clericalizada. Parece que se não há padre, tudo pára. Ainda se me apercebi que houvesse leigos que se sentissem parte viva nas responsabilidades tanto pastorais como administrativas das paróquias.
No entanto, sou testemunha dos esforços que o Bispo Arlindo Furtado (Diocese de Santiago/Praia) e do Bispo Ildo Fortes (Diocese do Mindelo), desenvolvem no sentido de incutirem às suas Igrejas locais um rosto mais de acordo com o modelo da Lumen Gentium do Concílio Vaticano II: uma Igreja de índole mais comunional, de maior corresponsabilidade de todos os batizados. As minhas duas visitas, em setembro de 2013 e a deste mês de agosto, enquadram-se neste esforço como se pode constatar nos relatos que deixei, já no ano passado neste blog.
Por razões que ainda não me atrevo a referir aqui (precisarei de mais tempo de estudo do fenómeno e da história), é evidente que o povo católico funciona, ainda, muito umbilicalmente dependente do clero.
É uma pesada herança do catolicismo português que os padres (e o seu estilo europeu) ainda não conseguiram metamorfosear. São marcas de uma religiosidade tradicional que também pesa muito em Portugal. Em Cabo Verde, permanece uma Igreja de devoções a Nossa Senhora e a muitos santos e santas de evidentes marcas portuguesas.