Quaresma de 2014

Angústia Pascal

Voltei às Comunidades de Malatane para com elas celebrar a Páscoa. Ficaram por sua conta após a celebração do Advento-Natal. È a oportunidade de se exercitarem por si mesmas e crescerem – ou não – no sentido da responsabilidade própria! Desafios, neste mundo islamizado, não lhes faltam!

O choque permanente de cada vez que regresso consiste na constatação da pobreza e miséria endémica que afecta todas elas, ou eu ainda não consegui penetrar nos interstícios da vida socio-económica local em toda a linha. Mas que há miséria, vê-se; sente-se; palpa-se. Está estampada na cara de muitos homens e mulheres.

Entre o 2º e o 3º Domingo da Quaresma, foram 10 dias de celebrações penitenciais e confissão comunitária dos pecados, na mira de celebrarmos a Misericórdia de Deus com realismo e seriedade: cientes dos pecados de que somos culpados e cuja eliminação está ao nosso alcance; cientes também dos pecados ambientais, estruturais, sociais e políticos cuja correcção, em boa parte, nos escapa, mas que também nos dizem respeito…

Foram celebrações que ocuparam as manhãs por inteiro, normalmente das 8.00 h ao meio-dia! Como me ia lembrando dos europeus,  sempre com pressa para desaparecerem da igreja, de qualquer celebração, seja ela qual for!

Na revisão da vida da comunidade procuramos criar o terreno de observação e exame de consciência. Ao mesmo tempo, cada pessoa se vai examinando a si pessoalmente. A Palavra de Deus proclamada surge como reforço desse exame ou dessa denúncia, interna e externa, como luz e feliz anúncio do perdão para os corações contritos.

O achegar-se - ou não - ao gesto da absolvição individual, mostra que nem todas as pessoas se sentem suficientemente (desenho) reconciliadas…interiormente, e que ainda há facetas da própria vida a corrigir. Claro que corremos o risco de algumas poderem pensar que será a “magia” do toque das mãos do padre na cabeça que as reconcilia…. Mas isso também acontece com as confissões individuais e auriculares…

Entretanto….
Nas madrugadas das longas noites e nos entardeceres de cada dia, catrapiscando, na varanda, a beleza dos coqueiros projectados  no crepúsculo do anoitecer, fui lendo  OS SONHOS DO PAPA FRANCISCO  e AO LADO DOS POBRES-A Teologia da Libertação é uma Teologia da Igreja. Quanta alegria e exultação interior por ver assim, preto no branco, ditas as coisas da Igreja e da Teologia da Libertação como as fui aprendendo com o Frei Bento e, sobretudo, com a prática de as ir vivenciando, durante 34 anos, ao lado de um Bispo como Manuel Vieira Pinto!

Custa-me mesmo a perceber por que tivemos de aturar tanto retrocesso pastoral e teológico, sobretudo na Europa, Portugal incluído, nos últimos 20 anos, com o clericalismo - quase - fundamentalista a teimar no seu ressurgimento.

E, a talho de foice, aproveito para render aqui a minha gratidão ao Cardeal José Policarpo que, num dos vários encontros com que habitualmente me privilegiava, já no fim do dia, na sua casa residencial, me retorquia, perante a minha denúncia do clericalismo ressurgente: “Sabes lá, Zé! Até aqui no nosso seminário já temos seminaristas que se ajoelham de mãos postas para comungarem na língua”. Eu retorqui-lhe “A culpa é sua!”. E expliquei-lhe porquê. Não me contestou. Não chegou a corrigir muitas das anomalias que se foram instalando no patriarcado, talvez por falta de tempo… ou, como agora algumas pessoas dizem, por falta de coragem temperamental! Seja  como for, eu devo-lhe a gratidão de me ter recebido, sempre que o desejei, sem delongas, na familiaridade da sua casa pessoal. Era, também, um tempo de tomar conhecimento das mesquinhices e cuscovilhices – por via clerical ou laical, havia de tudo – que lhe iam chegando contra a minha - dizem - inveterada e zelosa criatividade pastoral… E terminava “Mas Zé, não faças coisas que não te possa defender”. E crescia a nossa cordialidade e o compromisso por uma prática pastoral que, percebi, ficou sempre muito longe do que ele desejaria. Faltaram-lhe pastores, bispos e padres suficientes e sintonizados (sobretudo depois da saída para o Porto do agora Patriarca, Manuel Clemente, e do falecimento do saudoso Tomás Nunes) pelo que teve de se resignar com o que havia (o que há).

Mas falo de angústia pascal, porquê?

Porque me é impossível ler OS SONHOS DO PAPA FRANCISCO  e AO LADO DOS POBRES-A Teologia da Libertação é uma Teologia da Igreja e abstrair da miséria endémica em que me sinto mergulhado nestes dias, aqui. Parafraseando Gutierrez, também eu pergunto “Como anunciar a estes pobres miseráveis que Deus os ama? E como ajudar estes pobres a perceberem a força libertadora que Deus é, ou pode ser, se se tornarem verdadeiros discípulos de Jesus de Nazaré? No fim de 45 anos, ainda não sei o segredo pastoral que os leve a juntar forças e energias espirituais e materiais para a luta transformadora da sua condição. Porquê a fome cíclica nestas terras ricas? Como vencer a ignorância endémica para aproveitar tantas riquezas que, agora e aqui ao lado, em Sangage, surgem abundantes, enquanto até os seus filhos permanecem em indignos buracos sentados no chão a que se atrevem a dar o nome de escola?

Como conseguir que, em comunidades encrustadas em 99% de muçulmanos, estes cristãos e estas cristãs se ergam como testemunhas de Jesus de Nazaré sobressaindo na alfabetização, na higiene, no compromisso cívico e político, percebendo que somos portadores de uma mensagem e de uma força que pode mover montanhas?

Como desenfeitiçar a África e, concretamente, este Moçambique, que parece estar encaminhado para os figurinos económicos contra os quais se levantaram os pobres das CEBs e demais comunidades cristãs de base latino-americanas donde, agora, irrompeu o Papa Francisco?

É urgente uma teologia da Libertação em África que se erga da prática mais sadia das tradições religiosas africanas já evangelizadas e, por isso, libertas do peso de uma tradição agrilhoante!

Até agora quase todos os padres são formatados em Roma donde regressam mais romanizados do que agentes de libertação cristã. São transplantes! Mais preocupados repetidores da (pseudo)ortodoxia romana, do que artífices inspiradores de veredas e caminhos de libertação no âmago dos seus próprios familiares, sem serem tribalistas; do que criativos agentes de inculturação no cerne dos seus próprios irmãos de cultura, sem se fecharem no estreito circulo familiar!
Mais inquietos com a prosperidade de todo o povo, do que com a sua sobrevivência pessoal, que, no entanto, deve ser criteriosa e cuidadamente garantida em comunhão diocesana e presbiteral.
 Criatividade pastoral, de incidência social e até litúrgica, é do que se precisa!


Apesar de os leigos serem uma multidão de activos evangelizadores, continuamos à espera que, de Roma, nos venham os ventos franciscanos na consolidação de uma caminhada não clerical que já tem muitos alicerces ainda não consolidados. E o clericalismo vem-se destilando gota-a-gota, minuto-a-minuto, sobretudo quando a esperança renovadora de João XXIII e do Concilio Vaticano II tem sido ocultada por não ser devidamente estudada, sobretudo nos seminários donde, inevitavelmente, continuarão a sair os mais responsáveis pastores da Igreja local.