Páscoa do Bispo-Profeta Manuel Martins



 
 
Bispo-Profeta Manuel Martins

Tive a graça de ser um dos seus muitos amigos. Uma amizade que foi crescendo à medida que íamos dando conta das nossas afinidades ideológicas e pastorais. Conheci-o já nos anos 1980. Mas em 1978, tendo eu passado meteoriticamente, como professor, numa escola de Setúbal, ouvia os meus colegas professores falarem do Bispo que também estendia a roupa na varanda de sua casa e andava na rua, ia ao café e falava a toda a gente.

Fui apanhado no Porto, pela sua páscoa e, por isso, pude participar na sua celebração, neste dia 26 de Setembro, numa diocese sede vacante onde a dor da Páscoa do seu Bispo António Francisco continua muito viva e a mover todos os corações, e onde o nosso VISIONÁRIO (que eu+Isaías visitámos momentos antes desta celebração) aguarda também a sua graça pascal!

Em 3 de Março deste ano, Manuel Martins teve a amabilidade de nos distinguir – a mim e ao Isaías – não só com um almoço, mas também com um livro a cada um, com comoventes dedicatórias que seria vaidade aqui transcrever...

Curioso: o livro que me deu a mim, tem um subtítulo – Homilias de um Bispo de todos e para todos (2015) – quase parafraseando o título do meu primeiro – Uma Igreja de Todos e de Alguém (2012). Na capa, além dele, a saudar o Papa Paulo VI que o nomeou como 1º Bispo da recém-criada Diocese de Setúbal, e atrás dele, aquele que, segundo ele próprio me disse dias depois da sua partida deste mundo, fora seu “Padrinho” de ordenação episcopal, o Bispo António Marcelino que, além de prefaciar o meu 1º livro, prefaciou também o PENITÊNCIA E CONFISSÃO DOS PECADOS – POR QUE SIM? (2013),  que já não veria, por, entretanto, ter partido para Deus em Outubro de 2013.

Como que adivinhando o que se estaria a passar, neste domingo à tarde – 17:25 -, tentei falar com o Bispo Manuel Martins para a casa dos seus familiares onde tinha passado a residir. Queria desafiá-lo a ir estar connosco num Seminário Internacional na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, incidindo sobre
Missionários e Missões na África à luz do Pensamento Social Cristão novecentista
e, numa boa parte, incidiria sobre sobre a figura de Vieira Pinto:
Missão em Moçambique à luz do Concílio Vaticano II:
Memória e testemunho missionário
- Ir. Carmo Ribeiro (Irmãs Missionárias Combonianas)
- P.e Pedro Fernandes (Missionários do Espirito Santo)
- P.e José Luzia (Arquidiocese de Nampula- Moçambique) –
(Fiz-me substituir pelo Isaías que, no momento, estava na sala e, assim, tiveram os participantes um excelente testemunho de um pastor leigo em vez de uma freira e dois padres)
- Apresentação da obra O Visionário de Nampula: Dom Manuel Vieira
Pinto”
, da autoria do P.e José Luzia, pela Prof.ª Doutora Patrícia Teixeira Santos.

Momentos depois, percebi que a não-resposta do querido Bispo Manuel Martins se devia à sua Páscoa.

Na manhã do dia seguinte, bem cedinho, tive o privilégio de receber um doloroso telefonema, com abundante pranto e desabafo, da pessoa amiga “em cujos braços” adormeceu no Senhor. Sou um privilegiado!

O Porto é uma Diocese de insignes servidores do Evangelho e de uma Igreja relevante no mundo: António Ferreira Gomes, Sebastião Soares de Resende, Manuel Vieira Pinto, António Francisco Santos e Manuel Martins! Bispos que, como me reagia o agora Bispo de Setúbal, José Ornelas, a propósito do seu antecessor, nos deixam grandes heranças e grandes desafios.

Que a Diocese do Porto e a de Setúbal nos brindem com novos passos de serviço às genuínas causas da Humanidade, e juntem os seus esforços aos do Papa Francisco ao qual, como sabemos, não faltam calúnias e ataques como Manuel Martins, António Ferreira Gomes e Vieira Pinto tiveram de suportar pela sua obediência ao Espírito de Deus que os revestiu da Profecia.
Abraço
Zé Luzia

««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««

BISPO VERMELHO, crónica SIC Notícias

BISPO VERMELHO (25.09.2017, SIC NOTÍCIAS ONLINE)
Aquela entrevista, nos idos anos 80, teria impacto na ainda pueril carreira do jornalista que ousava dedicar-se a um tema editorialmente difícil. "A Igreja tem de ser a voz dos sem voz". Ali estava uma âncora de frescura. Uma oportunidade de trazer a vivência eclesial, com todas as suas contradições e tensões, para a rama da informação. Pela voz de um homem de pequena envergadura, sorridente, que apoiava as palavras com o movimento das mãos dando-lhes a consistência de uma presença. Quando, na sua pronúncia do norte, o bispo Manuel Martins falava das "injustiças" e da "dignidade da pessoa humana", soava a poesia prática e assertiva.
Discípulo do pensamento de António Ferreira Gomes, e tal como Hélder Câmara, Manuel Martins dava o corpo e a alma à coerência evangélica. Com coragem, com frontalidades que lhe valiam inimigos e dissabores, mas com o respeito de todos. Sobretudo dos que se reviam naquele bispo combativo, dos mais pobres e humildes, dos desempregados, dos que não conseguiam chegar aos frios guichés da burocracia e da caridade, dos que na península de Setúbal trabalhavam sem receber salário. As periferias, de que agora tanto se fala, eram o espaço pastoral e social do bispo Manuel Martins.
Chegou à então recém-criada diocese de Setúbal em 1975. Moldou a ação à época pós-revolucionária. Quando a cintura industrial cedeu na península e as fracturas sociais alastraram, não hesitou em tomar partido pelas pessoas. Com a força da denúncia ou com a ação discreta e empenhada, no terreno, fazia pontes. Recebia trabalhadores e sindicalistas, batia à porta de políticos e empresários, andava pelas ruas da cidade ao encontro dos que das ruas da cidade faziam casa, sem teto, por imposição do desemprego ou apanhados depois nas redes da droga. A Cáritas de Setúbal, instituição solidária da Igreja, transformar-se-ia num refúgio para muitas destas pessoas. Também com o incentivo de Manuel Martins, havia em Setúbal uma tradição de padres operários. Nas fábricas, ombro a ombro, incentivavam os trabalhadores a reivindicar a dignidade. Alguns optaram pela política partidária e pelo movimento sindical, outro território de ação que o bispo acabaria por compreender.
São conhecidas as altercações com os poderes políticos. Martins denunciou a fome na península quando parecia que Lisboa não queria falar de tão incómodo assunto. Mário Soares e Cavaco Silva terão ficado muitas vezes com as orelhas vermelhas. Mais tarde, Soares diria em público que aqueles gritos de alerta do bispo de Setúbal lhe tinham feito bem.
Manuel Martins entendia que "a Igreja devia ser de esquerda e não de direita" (TSF, 26 março 2017). A expressão tem um contexto e deriva de uma visão própria sobre os critérios definidores do espectro político. Mas é esclarecedora quanto à forma como Manuel Martins posicionava a acção fundada no evangelho para a intervenção política e social. A Igreja "tem medo" (SIC, 22 fevereiro 2014), dizia, "e mudou o Credo, que passou a ser 'creio na Santa Igreja, católica, apostólica e... adormecida'", criticava.
Era um homem por vezes difícil de localizar, mas afável e disponível. Numa fria madrugada de novembro de 1991, recebeu no Paço a chamada de uma rádio a solicitar um comentário sobre a situação em Dili. Não só se disponibilizou, como esteve uma boa meia hora à conversa com o jornalista antes de entrar na emissão. Timor-Leste seria desde a primeira hora outra das suas causas visíveis, numa altura em que, pela tradição da prudência ou por desconhecimento, a diplomacia da Santa Sé e o clero em Portugal ainda hesitavam no alinhamento dos discursos. Chegou a fazer circular uma carta dirigida aos bispos europeus para que se unissem por Timor. Casaroli repreendeu-o e proibiu-o de prosseguir com a ação.
Há uma vida de histórias reveladoras da personalidade. Quando chegou a Setúbal, foi, discreto e sem se identificar, assistiu a um culto numa igreja protestante local. As cortes locais dos partidos mais à direita chegaram a recusar ir a missas presididas pelo "bispo vermelho". E que dirá aquela mulher que inadvertidamente deitou as chaves de casa no lixo e viu o bispo mergulhar no contentor para a ajudar a encontrá-las?
A morte é a mais previsível das contingências humanas. Morte física, porque a outra fica ao abrigo da fé e das interpretações filosóficas ou religiosas. Se pela condição da idade, estaríamos à espera da partida de Manuel Martins, já a morte recente de António Francisco dos Santos apanhou a Igreja e o país de surpresa. Manuel Martins sofreu muito com a morte precoce do bispo do Porto.
Não fomos a tempo de os juntar à mesa do café para registar a revisão sintonizada de memórias e leituras deste tempo de perplexidades. Devem estar juntos noutra dimensão, a limpar as arestas da Igreja e do mundo. Ou a usar o sentido de humor que os caracterizava - por vezes cáustico e incisivo na voz de Manuel Martins - para medir as acusações de heresia feitas ao Papa Francisco por um grupo de católicos integristas...